Rudolf Karl Bultmann

JESUS CRISTO E A MITOLOGIA
Edição disponível em português: S.Paulo, Fonte Editorial, 2005.


O exegeta neotestamentário Rudolf Bultmann (1884 - 1976)

Rudolf Bultmann acusava com certa razão seus críticos de tecerem comentários sobre sua obra freqüentemente sem prestarem atenção nos seus escritos e às vezes em sem possuir o conhecimento dos mesmos [1]. Isso é perfeitamente compreensível pelo menos no cenário brasileiro onde apenas a partir da década de 60 começou-se a discutir seriamente a teologia do exegeta alemão nos círculos acadêmicos que de forma insipiente iam se formando nos centros maiores, abrindo caminho para os debates mais apaixonados dos anos seguintes [2]. Contudo, de uma forma geral, o desconhecimento de Bultmann pode ser atribuído, pelo menos no caso brasileiro, primeiramente ao próprio distanciamento em relação aos centros de discussões da Europa e dos EUA aonde gravitava a produção teológica mais gabaritada, somando-se a isso o predomínio em nosso meio de uma teologia de cunho fundamentalista, com lastro teórico embasado na literatura teológica norte-americana em geral infensa ou mesmo hostil à produção européia em geral e alemã em particular (ainda que nem sempre enfocando ou procurando conhecer seus processos e até ao contrário, mostrando desconhecimento ou um conhecimento primário e irregular das fontes originais), e em segundo lugar, sobretudo nos centros onde a produção teológica conseguia estabelecer o diálogo por meio do maior acesso às fontes, pela simples rejeição ou colocação em segundo plano, da exegese bultmanniana e sua proposta existencialista de demitologização, em detrimento de uma exegese mais próxima das exigências ideológicas e históricas da realidade brasileira e latino-americana, que não se podia dar por satisfeita com a interpretação existencialista bultmanniana num momento em que essa começava a ser lentamente colocada de lado nas universidades européias, fenômeno esse que a teologia da libertação consideravelmente amplificou. Por isso, pelo menos até anos bem recentes, a teologia neotestamentário, católica ou evangélica, teve na América Latina em geral e no Brasil em particular, o nome de Joaquim Jeremias (1900 – 1979) [3] como referencial teórico [4] , em detrimento de Bultmann ou seus discípulos que apenas nos últimos anos começou a ser de fato conhecido pelo público acadêmico [5].

Isso, contudo não pode nos servir de impeditivo ou desculpa para não se procurar conhecer o pensamento de um dos mais expressivos representantes da teologia do século XX e que embora sendo conhecido apenas pela sua proposta de demitologização do Novo Testamento, propõe em sua reflexão teológica não apenas redefinir o significado de mito na Bíblia, mas também reencetar a nossa compreensão da fé a partir da própria experiência do homem moderno e do modo como este homem lida com os diversos mitos em sua volta (pois evidentemente, e a psicanálise, sobretudo trabalha muito mais com isso, que as concepções míticas fazem cada vez mais parte da hermenêutica da vida, proporcionando ao homem moderno as ferramentas para que possa compreender o seu existir e de como de fato pode se tornar um devir, a partir da leitura dos mitos). Bultmann, evidentemente, não é filósofo, embora escreva uma teologia em contínuo diálogo com a filosofia existencialista, mas sua proposta teológica ao considerar a concepção mítica da Bíblia, procura responder existencialmente questões que fazem parte da realidade presente, e nesse sentido são também questões filosóficas. Bultmann retoma uma tradição teológica que remonta a Anselmo, no sentido de tornar as questões teológicas também reflexões filosóficas, e embora muito do seu discurso acabe adquirindo um sentido de subordinação à filosofia, elas não deixam, por outro lado, de serem, em sua essência, questões de âmbito teológico e que tratam de especificidades que a Teologia necessita responder se pretende exercer um papel na construção do pensamento moderno. Sua proposta, nesse sentido, não se difere daquilo que tentaram em outros tempos David Strauss, Paul Tillich e, até certo ponto, Karl Barth, exceto pelo teor aparentemente radical de seus escritos. E quando dizemos aparentemente radical é justamente em decorrência da idéia já consagrada, sobretudo nos meios fundamentalistas e pentecostais, de que a proposta de Demitologização de Bultmann pretendia simplesmente destruir o Novo Testamento com todos os seus sinais e palavras-ação (Lutero) o que não apenas revela desconhecimento de sua obra, como ainda, o abismo que separa suas propostas hermenêuticas, por exemplo, da crítica liberal clássica do século XIX, ainda que não deixe de ser, sob certo aspecto, também um produto do liberalismo teológico.

Felizmente, nos últimos anos, um bom número de escritos de Bultmann já se encontra disponíveis ao leitor de língua portuguesa, o que, de certa forma, nos liberta da perigosa dependência dos comentaristas de segunda mão. A publicação da imensa Teologia do Novo Testamento na qual ele dedicou seus últimos anos de atividade intelectual como professor em Marburgo, é certamente uma vitória para aqueles que gostam de estudar a Teologia nas fontes, mas é a esse escrito incomparavelmente menor que queremos dirigir nossa atenção, e isso não por conta da exigüidade, mas por causa do poder de síntese desse escrito que serve muito bem como introdução à Teologia do Novo Testamento devendo ser lida, pelo menos assim eu recomendo, antes dessa obra. Isso porque Jesus Cristo e Mitologia têm todas as características de uma obra de síntese, trazendo os debates da demitologização de forma mais didática e por isso mais facilmente assimilável para os que não exercem o ofício teológico. Resultado de uma série de palestras ministradas pelo exegeta (Conferências Shaffer e Cole, realizadas respectivamente na Divinity School da Universidade de Yale e na Universidade de Vanderbilt) e em outras instituições de ensino norte-americanas (inclusive o Union Teological Seminary de Nova York e o Seminário Crozer) durante a passagem de Bultmann pelos EUA após a sua aposentadoria de Marburgo, em 1951, essas conferências tem forte sabor didático e por isso expressam de forma mais clara e evidente as linhas de pensamento traçadas e não compreendidas a contento em Novo Testamento e Mitologia (1941).

A demitologização é uma proposta hermenêutica extremamente radical (embora conservadora nos seus resultados) na qual, diferentemente das propostas anteriores, os conceitos ou elementos condicionados na proclamação (nascimento virginal, ressurreição, juizo final, Parousia, etc), não são mais perscrutados no sentido de se buscar alguma realidade oculta (caso da hermenêutica alegórica) ou interpretados literalmente (caso da tipologia), mas são simplesmente eliminados da sua essência (isto é, nega-se aquilo que eles dizem), em troca de uma nova compreensão existencial dos mesmos. Teremos de nos perguntar, pois, diz Bultmann, se a pregação escatológica e o conjunto dos enunciados mitológicos contêm um significado ainda mais profundo que permanece oculto sob o véu da mitologia. Se for assim, devemos abandonar as concepções mitológicas precisamente porque queremos conservar um significado mais profundo. A este método de interpretação do Novo Testamento que trata de redescobrir seu significado mais profundo, oculto atrás das concepções mitológicas, eu o chamo de demitologização (...). Não se podem eliminar os enunciados mitológicos, senão interpretá-los. É, pois, um método hermenêutico. (p.16)

O ponto de partida de Bultmann é o reconhecimento de que o mundo moderno foi moldado não conforme o juízo de valores herdados da tradição judaico-cristã, mas do mundo grego-romano. Este, ao contrário do mundo judaico-cristão, já havia superado no período clássico o sentido mítico da expressão e compreensão da realidade imanente e transcendente da existência, inaugurando desse modo o pensamento moderno ao subordinar aos elementos cientificamente comprovados e demonstrados tudo aquilo que não fosse passível de conhecimento ou reconhecimento imediato. (Idem, p.14). Ora a compreensão do mundo e dos processos pelos quais ele é regido, trazido pela tradição judaico-cristã é ininteligível sob esse ponto de vista pois ela se choca contra uma sociedade moldada conforme o progresso científico e cultural que sob todas as comparações que se possa realizar, terá sempre como ponto de partida a Grécia antiga e não a sociedade judaico-cristã do mundo helênico palestino. Nesse sentido, a leitura do NT fica comprometida porque não somente um abismo cultural separa os dois mundos, mas principalmente porque essa mensagem mítica trazida pelo cânon neotestamentário contradiz a compreensão do homem moderno que não se identifica e nem aceita. A única forma de realizar essa leitura é por meio da demitologização, isto é, redefinindo o sentido do mito e, na medida em que é possível estabelecer essa nova interpretação. 

Embora criticado por pretender anular o NT por meio de um reducionismo que lhe nivelaria a uma compreensão ética similar à do mundo grego, e por isso em nada dissociada deste, negando-lhe qualquer expectoração transcendente, Bultmann certamente pensou em termos ortodoxos porque a busca pelo cerne da mensagem neotestamentário passa prioritariamente pelo resgate da mensagem do próprio Cristo a partir da proclamação (kerygma) da comunidade cristã primitiva, e da qual todos os demais eventos, milagres, ressurreição, etc, são aderentes. Ora, dos quatro evangelhos, só João apresenta um grande número de ditos de Jesus o que o torna, na concepção bultmanniana, de importância exponencial para a compreensão do NT, uma vez que ele retém grande parte da mensagem de Jesus. Na pregação de Jesus não aparece o mundo de gozo renovado do apocaliptismo judaico o que, segundo essa interpretação demitologizadora, eliminaria a compreensão de um juízo final eminente; assim, para o exegeta que se dedicar a esse exercício, o objetivo final será a identificação e recolocação da mensagem do próprio Cristo no cerne da teologia neotestamentário. Nesse sentido, a proclamação de Jesus em João, como também a de Paulo, é fundamental para reconstruir o kerygma de forma não mítica.

Para Bultmann, a comunidade cristã primitiva concebeu a figura do Messias de forma mítica, imaginando a sua volta em toda a sua majestade e glória excelsa para o cumprimento da Parousia. A pregação do Novo Testamento anuncia a Jesus Cristo, não só a sua pregação acerca do reino de Deus, senão à sua pessoa, que foi mitologizada desde o início do cristianismo primitivo. (p.14) não existe consenso sobre Jesus entendia a si mesmo como Filho do Homem ou o Messias revelado, mas se houve essa compreensão então o próprio Cristo teria concebido a sua imagem também de forma mítica (mesma página). Na sociedade moderna a leitura do NT com suas narrativas míticas e suas representações simbólicas da escatologia estavam superadas e não possuíam valor algum, sendo necessária uma depuração das passagens míticas, separando-as daquilo que realmente possa ser aproveitável, tomando por base o fato de que nem todas as pregações de Jesus eram escatológicas, mas que também estavam inseridas de ensinamentos éticos com plena validade em nosso tempo (p.15). 

Nesse sentido, embora sendo confessionalmente luterano, as propostas de Bultmann é radicalmente o oposto do que ensinava o próprio Lutero no que diz respeito à objetividade e a realidade da Palavra e assim, cegar a razão e dar-se por vencido [6] aceitando-a como veraz pela fé. Em Bultmann, a razão precisa perscrutar a fé e compreendê-la à luz da clara compreensão dos seus enunciados. Tudo o que foge da razão, tudo o que não possa ser claramente decodificado por ela e realmente não pode ser crido por verídico (mesma página). Sua definição de mito, todavia, lhe prejudica. Está tão preso no Iluminismo do século XVIII que não pode ser aceita sem censuras, como ele mesmo mais tarde reconheceu [7]: amiúde se diz que a mitologia é uma ciência primitiva que se propõe explicar os fenômenos e os acontecimentos estranho, singulares, surpreendentes ou terríveis, atribuindo-os a causas sobrenaturais ou demônios (...) os mitos falam de deuses e dos demônios como de poderes aos qual o homem se reconhece como dependente, cujo favor necessita e das quais teme a ira (...) os mitos expressam a idéia e que o homem não é dono do mundo, nem de sua própria vida (...) e de que a vida humana é preenchida por mistérios e enigmas (p.16). Hoje, poucos concordam com essa opinião, sobretudo depois da publicação de As Máscaras de Deus, de Joseph Campbell (1904 – 1987) que restabeleceu o sentido e a importância do mito na sociedade moderna.

Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser e de nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos. (...) Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana. [os mitos] ensinam que você pode se voltar para dentro, e você começa a captar a mensagem dos símbolos. Leia mitos de outros povos, não os da sua própria religião, porque você tenderá a interpretar sua própria religião em termos de fatos – mas lendo os mitos alheios você começa a captar a mensagem. O mito o ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiência é. [8]

Assim, temos duas propostas que, à falta de coisa melhor, investem decisivamente contra o fraco conceito bultmanniano de mito, eivado de todo o preconceito racionalista do Iluminismo. Uma enfocada na Psicologia e na Antropologia que associa o mito à conjunção de todo um conjunto de experiências de povos e culturas e que por isso nos colocam na responsabilidade de lhes atribuir uma significação ainda hoje, porque sua construção é o resultado de todas as experiências humanas de todas as épocas, apenas expressas de forma contextualizada, considerando especificidades lingüísticas e culturais. A outra, enfocada na Teologia, concebe o mito como a linguagem, por excelência, do Sagrado.

Todo mito contém um pensamento teológico que pode ser e, de fato, muitas vezes foi explicitado. Harmonizações sacerdotais de mitos diferentes algumas vezes revelam profundas percepções teológicas. Especulações místicas como as do hinduísmo vedanta unem elevação meditativa com penetração teológica. Especulações metafísicas como as da filosofia clássica grega unem análise racional com visão teológica. Interpretações éticas, legais e rituais da lei divina criam uma forma distinta de teologia no âmbito do monoteísmo profético. Tudo isto é “teologia,” logos do theos, uma interpretação racional da substância religiosa dos ritos, símbolos e mitos [9] .

Ainda Paul Tillich, lembrando as experiências tentadas no campo da arte do romantismo ao expressionismo do século XX, observa que no esforço de se restabelecer a unidade das funções cognitivas e estéticas na tentativa de se criar daí um novo mito, um mito humano ou baseado na realidade da sociedade industrial e moderna vigente, a razão humana fracassou rotundamente. E o motivo desse fracasso foi o fato de que somente uma nova revelação consegue exercer esse poder reunificador dos elementos cognitivos e estéticos (caso do Cristianismo) e não o produto específico ou exclusivo de uma razão racional [10] .

Voltando a Bultmann, esse prossegue em seu trabalho de demitologizar a mensagem neotestamentário como estando perdida no limbo do mundo moderno, agora por meio da comparação com o mundo grego. As expectativas existenciais já apareciam na literatura, sobretudo na tragédia gregas, desde o período homérico e expressam – como ainda expressam – de maneira inteligível até para o homem moderno, o devir humano.

Que diferença existe entre a compreensão grega e a compreensão bíblica? Os gregos viram no “destino” o poder imamente do além mais, dos deuses sem relação aos quais todos os assuntos humanos são vãos. Não compartilham a concepção mitológica da escatologia como acontecimento cósmico do fim dos tempos; e assim, podemos dizer que o pensamento grego é mais similar ao homem moderno que a concepção bíblica, posto que, para o homem moderno, a escatologia tem perdido a sua significação (p.21). Na verdade, o que Bultmann faz aqui é exatamente o que Paul Tillich acabou de denunciar: uma tentativa de sintetizar a junção dos elementos cognitivos e estéticos da natureza humana e por meio dessa síntese totalmente racional criar uma nova relação entre o homem e sua idéia de eternidade e total transitoriedade do mundo – ou como diz Tillich, um novo mito. Contudo, o que Bultmann não nota, ou não quer notar, é que a tragédia grega se encontra ainda no linear entre o mundo mítico e a razão filosófica, ruptura essa que é assinalada não no teatro de Sófocles ou Eurípedes, mas na filosofia platônica, e principalmente, em Aristóteles. Medéia continua sendo a bruxa que na sua insanidade devastada pelo amor, pune com o infanticídio o pragmatismo de Jasão. Antígona desafia a lei de sua cidade por se encontrar na obrigação – da qual não pode e não quer fugir – de enterrar o seu irmão, morto numa frustrada tentativa de golpe e por essa razão proibida por Creonte de ser enterrado com todas as reverências. 

Os personagens do teatro grego oscilam entre o mundo mítico do arcaísmo e o racionalismo helenista com tanta fluidez que parecem personificar ambas as esferas de compreensão ao mesmo tempo. Logo, a interpretação de Bultmann peca pela sua falta de profundidade e objetividade. A literatura grega não expressa a ruptura do mito, mas antes, que está se formando uma nova interpretação da realidade que não substitui o mito, mas o reinterpreta, logo, ainda não expressa a dimensão não-mítica da existência. Além disso, como Tillich já observou também a filosofia grega está eivada de elementos teológicos, isto é, uma interpretação racional da substância religiosa dos mitos, símbolos e mitos, reinterpretando seus significados sem anular o significado original dos mesmos. Assim, o mito está em toda parte da vida e das sociedades humanas e representa parte intrínseca da comunicação de suas experiências e vivências, representadas por uma mensagem que é a junção dos elementos cognitivos e estéticos e que, por conseguinte, pode ser apropriada tanto pela arte quanto pela religião, mesmo porque, a arte nada mais é do que a totalidade das formas que expressam as preocupações básicas da religião [11]. 

Todos os atos da vida humana realizam-se por meio da palavra falada e escrita, sendo, portanto, a criação cultural básica. Logo, de alguma forma, essa criação irá expressar a preocupação suprema e reproduzirá pela linguagem essa preocupação [12] . Assim, o mito também reflete essa preocupação porque ele também parte dessa premissa básica. Não precisa e não quer ser reinterpretado, mas compreendido em sua essência pois essa preocupação suprema que aparece no momento em que o mito é criado, se reproduz em nossos dias com os devaneios e angustias do homem moderno. O mito, portanto, pode ser uma forma de procurar sanear essas angústias.

O teólogo sistemático e filósofo
 Paul Tillich (1886 - 1965)
Bultmann lê o NT de maneira seletiva e nesse sentido ele segue a tradição de Lutero em toda sua essência colocando Paulo e João em posição proeminente em relação aos demais livros [13]. Para o exegeta, Paulo, e principalmente João, é quem iniciam o processo de demitologização da Bíblia, o segundo ainda mais que o primeiro (p.26). Para Bultmann entende a Parousia como o final do tempo histórico presente quando Cristo virá para arrebanhar os seus, ao passo que João entenderia a Parousia como sendo um evento que já se sucede na vida do crente, entendendo ressurreição, pentecostes e Parousia como um só e poderoso evento (p.27). Bultmann exemplifica isso na passagem de 2Ts 2.7-12 em que a terminologia de Paulo usada para descrever o anticristo é totalmente mitológica ao passo que em João são os falsos mestres os anticristos que assolam a Igreja. Em Bultmann, a escatologia sempre conduz ao presente. O futuro do homem é, assim, construído no seu presente.

Bultmann reconhece que a demitologização adota como critério a visão moderna do mundo (p.29) porque entende que a pregação da Palavra de Deus não oferece elementos sólidos que possam ser decodificados e aceitos pela razão natural. A visão bíblica do mundo é mitológica, e, portanto, inaceitável para o homem moderno cujo pensamento tem sido modelado pela ciência e já não tem mais nada de mitológico (mesma página). Isso o coloca inteiramente na dependência da tradição Iluminista do século XVIII, porque entende que o progresso científico, expressa outra forma de comunicação e compreensão do mundo que para todos os efeitos não pode assimilar a revelação da Escritura, por não compreendê-la ou mesmo, por rejeitá-la. (p.30-31). Só pelo abandono consciente dessa visão mitológica do mundo, que se pode chegar à Palavra de Deus e ouvir claramente o que ela ainda diz ao ser humano (p.31). É pelo aceitar dessa Palavra que o homem é exortado a deixar de lado toda futilidade da vida e seguir a um Deus que se revela fora e além de qualquer realidade tangível, fora e além da própria ciência (p.32). Nesse sentido, a fé é tanto exigência quanto dom oferecido pela pregação (p.33). Quem crê deixará de se alicerçar na sua própria convicção de segurança para buscá-la exclusivamente em Deus e nisso está o éter de toda a verdadeira existência. Nesse sentido, a demitologização não seria uma forma de racionalismo (ainda que seja concebida dentro de um propósito e de expectativas totalmente racionais), mas, ao contrário, pretende como diz o próprio Bultmann, compreender o verdadeiro significado do mistério de Deus (p.35). Para isso, Bultmann se utiliza das ferramentas hermenêuticas que ele tem disponíveis, começando pela filosofia existencialista de Heidegger de quem ele faz uso continuadamente (p.37). Isso é importante, porque se quisermos compreender corretamente a Escritura, precisaremos de uma chave que nos ajude na correta compreensão hermenêutica de sua leitura, uma vez que não posso me guiar por concepções absolutamente pessoais (isto é, tiradas de uma leitura pessoal da Bíblia) e uma das tarefas do filósofo (p.43) é localizar essa chave, que para o teólogo de Marburgo é a filosofia existencialista. 

O pensamento existencialista – na versão de Heidegger – não quer ensinar a como existir, como pretende o existencialismo sartreano, mas em antes, reafirmar que precisamos existir, isto é, temos de ter a consciência do existir (p.44) sendo, pois, uma ferramenta que nos proporciona elementos com os quais possamos compreender o sentido da existência em uma dimensão teológica. É claro que a filosofia existencialista não é uma ferramenta completa, pois ela só me permite compreender que só entendendo o significado da ação poderá o ser humano vir realmente a ser aquilo que ele é, em suma, ele só vive se tiver consciência de que está vivo, ele só ama se tiver consciência de que está amando, etc. (p.44-46), mais nada, além disso. O existencialismo de Heidegger, e ainda menos o de Sartre, não ensinam o homem a viver ou a amar. É uma ferramenta hermenêutica que ajuda a responder a pergunta ontológica do ser, embora não dê uma resposta decisiva para a mesma.

Os críticos de Bultmann, sobretudo os mais mal informados, têm a idéia de que a mensagem de demitologização do NT pretende simplesmente eliminar mitos e substituir a compreensão mítica neotestamentário por outra, mais racional e inteligível ao homem moderno. A passagem seguinte desmente esse raciocínio. 

Para Bultmann, o pensamento mítico entende a ação de Deus na vida e na história humana de maneira que tudo o que ultrapassa o entendimento comum pode ser descrito simplesmente de uma forma: milagre. Esse acontecimento, no entanto, não pode ser decodificado pelo entendimento humano e, portanto, aos olhos do cientista, constitui-se de fato um mistério sem elucidação (p.50). ora, isto não seria falar de Deus de forma mitológica já que falar de Deus como ato (isto, como Deus agindo na esfera da vida humana) é sobretudo falar de Deus mitologicamente? Bultmann afirma nada ter a objetar sobre isso porque neste caso, o mito tem um sentido muito distinto daquele que é o objeto da demitologização. Quando falamos de Deus como ato, não falamos de um modo mitologicamente objetivo (mesma página). Assim, Bultmann admite, mesmo que contrariado, que existe elementos míticos devem ser considerados como expressão da relação entre Deus e o homem e que isso de maneira nenhuma manieta a compreensão de Deus que não insiste em ações diretas para que seja crida a Sua revelação, mas apenas na cadeia dos eventos que constituem a revelação de Sua identidade paradoxal, que só pode ser crida aqui e agora apesar de toda a aparência de não-identidade (mesma página). 

Desse modo, somente quando se compreende a natureza e os propósitos totalmente paradoxais de Deus é que se compreende por inteiro a natureza do Seu ser e da Sua vontade. Na verdade, Deus como ato não se refere a um acontecimento que eu possa perceber sem estar implicado nele, nesta ação de Deus, sem que eu tome parte nesta ação, como objeto (p.54-55). Toda a minha vida pessoa implica ação de Deus e isso precisa ser compreendido de forma veraz e real, e conseqüentemente não mítica. Quando falamos de Deus como ato, falamos de Deus por meio de Suas bênçãos ou censuras, e isso não é falar simbologicamente, mas concretamente ou como prefere Bultmann, analogicamente, pois o amor de Deus, o zelo de Deus e a justiça de Deus em suma, não são elementos simbólicos, mas expressa experiências reais de Deus como ato aqui e agora (p.55). 

Esse pensamento não responde, todavia, a questão, já que não estamos falando de sentimentos que Deus, como pessoa, naturalmente haverá de possuir, e não a questão da demitologização essa relação analógica de Deus com o ser humano, mas sim com relação ao tratamento que devemos dar aos símbolos que traduzem a idéia do Sagrado. Os mitos também podem expressar os sentimentos e não raro o fazem como tem demonstrado a leitura que deles faz a Psicanálise. O centro do debate é como podemos compreender conceitos como ressurreição, ascensão, nascimento virginal, Parousia, etc, que evidentemente possuem linguagem mítica, como transmissores da suprema preocupação humana como afirma Paul Tillich, e desse modo, sem reinterpretá-lo (como quer Bultmann) nem suprimi-lo (como tentaram os teólogos liberais do século XIX) trazê-lo para o presente como uma mensagem perene de uma verdade evidente. O que precisa ficar claro é como, por exemplo, a ressurreição (que Bultmann rejeita como evento, como deixa claro em Novo Testamento e Mitologia) pode ainda falar ao homem moderno, de que forma essa linguagem mítica – e que por ser a linguagem do Sagrado necessariamente seria concebida de forma mítica por revelar e reunir de forma dialética grandezas tão distintas como são os elementos cognitivos e estéticos que se fazem presentes em todo discurso mítico, mas não no discurso moderno – poderia ser lida de outra forma levando em conta que a mensagem do texto bíblico não é uma especulação, mas uma afirmação e, por conseguinte, fruto de uma experiência concreta ainda que paradoxal, e de como essa linguagem expressa um evento que tem lugar no tempo e no espaço de uma forma bem clara, um evento que não pode deixar de ser tratado historicamente porque tem seu lugar na História (Oscar Culmann).

Uma vez que o elemento mítica não expressa uma grandeza, para Bultmann só resta apenas um meio de compreender o sentido do Sagrado e sua relação com homem: a fé. Ela é essencialmente antidialética e por isso representa uma experiência única e paradoxal do encontro do homem por Deus, num envolvimento de difícil classificação. Só na relação entre Deus e o homem é que podemos falar de fé (p.58). Os feitos da redenção certamente podem alimentar a fé, mas apenas na medida em que são percebidos por ela. Bultmann aqui não expressa um pensamento seu, mas o de Wilhelm Hermann (1846 – 1922), professor de Teologia Sistemática em Marburgo e que foi mestre do próprio Bultmann quando este ali estudara. A incorporação do pensamento de Hermann em seu sistema não é uma casualidade: pretende reforçar a idéia de que a fé é o elemento norteador da vida cristã porque nele está estabelecida a relação do homem com Deus sendo os demais elementos meramente acessórios ou adiáforos como diria Melanchthon. A fé pede compromisso e para haver compromisso precisa haver confiança. Nesse sentido a análise filosófica revela a sua limitação, pois ela nos diz que precisamos nos conhecer, mas não nos diz como ou de que forma poderemos atingir esse nível de compreensão senão quando o homem se esvazia de toda a segurança e passa a buscar essa auto-compreensão para entender a sua existência, o que é algo difícil de obter, mas necessário, na medida em que, por essa nova auto-compreensão, não somente a minha vida, mas tudo em minha volta será transformado. (p.59-60). 

Nesse sentido, para Bultmann, a demitologização não elimina a idéia da ação futura de Deus, mas o que o que podemos entender então, nesse sentido, por futuro? Para o exegeta, o futuro é simplesmente a liberdade de assumir a angústia, isto é, de decidir acerca do futuro. (p.61). Essa libertação da angústia frente ao Nada, porém, é algo que só pode nos ser dado pela fé, porque ela nos abre as portas para o futuro por meio da libertação das cadeias opressoras do passado. A fé nos liberta de nós mesmos, de nosso eu antigo e para nós mesmos, para o novo eu. E também não é isso que Paulo nos fala? (Rm 3.21-28; 5.1-4).

A demitologização como proposta hermenêutica é somente um experimento radical na medida em que se ignora o seu propósito que é o restabelecimento de uma fé confiante em Deus, por meio da mensagem de Jesus e que ela é antes de tudo um ato de decisão. Essa decisão, porém, se baseia apenas na experiência humana com Deus e apenas por meio dela essa compreensão é plenamente compreendida e assegurada. Seu único defeito é não compreender corretamente o mito, em não trazê-lo para o nosso tempo porque ele ainda tem muito a dizer (e na verdade jamais deixou de falar), preferindo, ao invés, deixá-lo esquecido nos primórdios da comunidade cristã primitiva por entender equivocadamente que as experiências e vivências daquelas comunidades cristãs e captadas daquela forma, nada significam e nada falam para o homem moderno. Na verdade, como assevera Joseph Campbell,é que o homem não compreende os mitos não porque viva numa sociedade pretensamente mais moderna por ser mais científica, mas simplesmente porque os baniu da vida moderna – embora não tenha tido o mesmo sucesso em banir as angústias e inquietações existenciais humanas que, tal como naqueles dias, persistem até hoje.

NOTAS:

[1]É o que faz, por exemplo, Pierre Debray: Estamos diante de uma heresia, tanto mais perigosa quanto suas conseqüências são aceitas por muitos que ficaram horrorizados se remontassem às causas teológicas e se apercebessem que se trata de adaptar o cristianismo ao “mundo marxista” esvaziando-o de sua substância. DEBRAY Pierre. A Nova Escola Teológica, in Hora Presente, N. 3, S.Paulo, 1969, p. 137. Citado em PIRES Frederico Pieper. Mito e Hermenêutica, o desafio de Rudolf Bultmann, p. 21.

[2]Na verdade é somente a partir da fundação da Associação Brasileira de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) em S.Paulo, em 1961, que se começa a se preencher essa lacuna com a publicação, geralmente por meio de parcerias com outras editoras, as obras teológicas sobretudo de autores europeus (MARTINS Edson, verbete Educação Teológica no Brasil in Dicionário Brasileiro de Teologia, p. 341.

[3]A Teologia do Novo Testamento, de Jeremias, foi publicada no Brasil em 1977, pouco depois da primeira edição do Jesus de Nazaré de Günther Bornkamm (Petrópolis, Vozes, 1975).

[4]Como lembra Gottfried Brakemaier, da Escola Superior de Teologia, EST, Jeremias constrói a fé sobre o Jesus Histórico, convicto de que a metodologia histórica seria capaz de provar a messianidade do nazareno. Por isto mesmo, a proclamação da comunidade posterior está integralmente prefigurada em sua pregação. Jeremias é crítico em suas análises, mas conservador em seus resultados, sendo o Jesus Histórico a medida do Evangelho. Onde se sofre sob opressão histórica e cativeiros babilônicos, a exemplo do que ocorre na América Latina, tal posição, logicamente, atrai mais simpatias do que a de Bultmann. Ainda para Brakemaier, a realidade latino-americana de opressão e injustiça, fazem com que a proposta de Bultmann não seja bem recebida nesse meio já que sua crítica e seu diálogo estão voltados para responder as questões lançadas pelo Iluminismo e o mundo moderno (BRAKEMEIER Gottfried. Apresentação à Teologia do Novo Testamento de Rudolf Bultmann, p. 21 – 27.

[5]Os primeiros artigos sobre Bultmann publicados no Brasil eram assinados por teólogos que possuíam formação em universidades estrangeiras, como o pastor Aharon Sapsezian (A Desmitologização em Rudolf Bultmann, in Revista Teológica, N. 30, 1962, p. 148 – 154) e o professor Prócoro Velasques (Rudolf Bultmann e a Demitologização, in Simpósio, vol. 4, ano XIII, 1980, p. 113 – 122). Como decorrência desse escasso interesse num primeiro momento, a obra de Bultmann é deixada de lado em detrimento, no caso evangélico, das obras de Karl Barth, Dietrich Bonhöeffer e Paul Tillich, e no caso católico, dos teólogos da libertação. PIRES Frederico Pieper, ob cit, p. 22 – 23.

[6]LUTERO Martinho. Obras Selecionadas, IV, p. 321.

[7]Eu concordo que minha definição de mito presta-se a mal entendidos. (PIRES Frederico Pieper, ob cit, p. 79. É também o que pensa Ronald Hepburn: Bultmann não oferece uma definição satisfatória, nem se compromete com a definição que oferece (Ibidem, p. 79). E até Paul Tillich que lhe é simpático vê com reservas essa falha de sua teologia. Ele (Bultmann) não conhece o significado do mito. Tampouco sabe que a linguagem religiosa é e sempre deverá ser mitológica. Até mesmo quando afirma a ação de Deus em Jesus, confrontando-nos com a possibilidade de decidirmos a favor ou contra a existência autêntica, ainda assim emprega linguagem simbólica e mitológica (TILLICH Paul. Perspectivas da Teologia Protestante, séculos XIX e XX, p. 232).

[8]CAMPBELL Joseph. O Poder do Mito. Entrevista com Bill Moyers[9]TILLICH Paul. Teologia Sistemática, p. 33.

http://www.autoconhecimento.valzacchi.com.br/mp3/o%20poder%20do%20mito%20-%20joseph%20campbell.pdf  acesso 20/06/10, 08:55.

[10]Ibidem, p. 105.
[11]Tillich Paul. Teologia da Cultura, p. 83.
[12]Ibidem, p. 83.

[13]Pois o Evangelho segundo João e as epístolas de Paulo, em especial aquela aos Romanos e a Primeira Epístola de Pedro, são o bom cerne e a medula dentre todos os livros. Eles deveriam, perfeitamente, ser os primeiros. E a cada cristão se deveria recomendar que os lesse por primeiro e com maior freqüência, familiarizando-se como eles pela leitura diária como se fosse o pão de cada dia. (...) João descreve poucas obras de Cristo, mas muitas de suas pregações, ao passo que os outros três evangelistas, inversamente, descrevem muitas de suas obras e poucas palavras suas. Por isso, o Evangelho segundo João é o único evangelho delicado e certo, o principal, sendo que se lhe deve dar considerável preferência e dedicar-lhe respeito. Também as epístolas de Paulo e Pedro superam em muito os três evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. LUTERO Martinho, Obras Selecionadas, VIII [Prefácio ao Novo Testamento, 1522], p. 127.

BIBLIOGRAFIA:

BULTMANN Rudolf. Teologia do Novo Testamento. S.Paulo, Teológica, 2004.
DICIONÁRIO BRASILEIRO DE TEOLOGIA. S.Paulo, ASTE, 2008.
LUTERO Martinho. Obras Selecionadas, vol. IV. S.Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concórdia, 1993.
vol. VIII. S.Leopoldo, Sinodal; Porto Alegre, Concórdia, 2003
PIRES Frederico Piper. Mito e Hermenêutica. O Desafio de Rudolf Bultmann. S.Paulo, Emblema, 2005.
TILLICH Paul: Perspectivas da Teologia Protestante, séculos XIX e XX. 3.ed. S.Paulo, ASTE, 2004.
Teologia da Cultura. S.Paulo, Fonte Editorial, 2009.
Teologia Sistemática. 5.ed revista. S.Leopoldo, Sinodal, 2005.